Quis pintar um quadro perfeito.
Escolhi a tela, com tempo e com cuidado.
Escrevia a lápis e polia o bico com frequência: cada traço teria que ser exemplar!
Usava folha de rascunho e só depois, com papel vegetal, decalcava os feitos para a tela.
Fui desenhando, devagar.
Fui construindo uma encenação pensada. Cuidada. Bem calculada.
E assim foi, durante algum tempo...
Mas sou humana. Descuidei-me.
Justamente quando me preparava para lhe dar cor.
Para me comprometer.
Quando peguei no pincel para demarcar com tinta os traços que há meses esboçava...
O vento.
A mudança.
A imprevisibilidade.
É...não podemos controlar tudo.
E há sempre uma janela aberta!
...E assim o vento entrou.
De rompante, derramou uma lata de tinta na tela que era pra ser perfeita.
Entrei em pânico.
Fiquei em choque!
Chorei. Gritei. Rasguei-me por dentro e por fora.
Enfureci-me. Enchi-me de raiva e de rancor!
...
E a tela continuava ali, em cima da mesa. Esquecida.
A tinta seca. Os traços-que-eram-para-ser-perfeitos, sumidos. Apareciam só aqui ou ali, onde a tinta não havia chegado.
Os pincéis e os lápis-caros e as tintas e o papel vegetal, abandonados.
E depois. Só depois. Parei. E reparei.
Nada acontece por acaso.
...
Ainda atordoada, frustrada, voltei e pegar no pincel.
Revolvi a tinta ressequida. Pintei por cima. Sem ensaios. Sem projetos.
Adicionei cores ao acaso. Misturei tudo.
E, sem querer, fui dando forma áquele caos.
Não era um quadro de exposição.
Foi-se tornando uma coisa só minha, que ninguém entendia. E ainda bem!
Era um quadro confuso. Revolto. Livre.
De luta e de coragem.
De fé e de vontade. Sem regras. Sem propósito. Sem caminhos traçados.
Era um quadro de alma. Bravo. Doce. Autêntico.
Era um quadro de amor.